Como reflexo de sua Constituição democrática e do importante papel que assume na política internacional com o compromisso de direitos humanos, o Estado Brasileiro reconhece os principais instrumentos internacionais de direitos humanos. Entre estes, destacamos: a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção pela Eliminação de Todos os Tipos de Discriminação Racial; e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Cada instrumento ratificado estabelece obrigações de direito internacional ao Estado brasileiro para garantir os direitos declarados e reconhecidos, sem usurpar os dispositivos e obrigações do direito doméstico. Estes deveres e obrigações internacionais pertencem aos Estados e se direcionam a todos os níveis de governo: federal, estadual e municipal; e a todas as esferas de Poderes: executivo, judiciário e legislativo.
Ao ratificar tratados multilaterais de direitos humanos, o Estado reconhece seus princípios humanitários e se compromete a implementar e proteger o rol de direitos fundamentais ali dispostos. Os instrumentos internacionais de direitos humanos servem de ferramentas de interpretação da lei nacional e, detêm status constitucional, de acordo com a Emenda Constitucional 45, quando passam a incorporar o ordenamento jurídico doméstico, como é o caso da Convenção OIT 169, recepcionada pelo Decreto 5.051/2004.
Instrumentos internacionais refletem em si a manifestação da soberania e liberdade nacional de cada país no cenário internacional. Cada país pode escolher ou não ratificar um tratado (seja de direito comercial ou de direitos humanos) e incorporá-lo como lei doméstica e vinculante. Cada país também tem a liberdade para votar favoravelmente ou contra uma Declaração de direitos humanos, arcando com as consequências morais e políticas de seu posicionamento internacional.
O Brasil optou por votar favoravelmente à Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, mantendo a coerência de seu posicionamento nacional e internacional em matéria de direitos humanos e povos indígenas. No plano nacional, estes instrumentos internacionais têm sido interpretados e aplicados para proteger os direitos dos povos indígenas às suas terras e aos recursos naturais nelas encontrados, tal como dispõe o artigo 231 da Constituição Federal Brasileira.
No entanto, na prática, a verificação dos direitos humanos dos povos indígenas ainda enfrenta inúmeros obstáculos de ordem política, social e econômica. Por isso, quando comunidades indígenas, por meio de suas organizações ou organizações parceiras, acessam o sistema internacional de direitos humanos para fazer valer seus direitos fundamentais (inclusive os aqueles reconhecidos pela Constituição Federal), elas também estão contribuindo para que o país se auto-examine e reconheça seus limites para daí então poder avançar.
Deste modo, ao contrário de constituir uma intromissão estrangeira ao Estado-Nação, as reclamações internacionais de direitos humanos ajudam a fortalecer as políticas de direitos humanos e os mecanismos nacionais de proteção aos seus cidadãos. Em assunto indígena, reclamações internacionais de direitos humanos evidenciam o entendimento de que as comunidades indígenas reclamantes vêem o Brasil como seu Estado, e por essa razão reclamam por igualdade de tratamento e de direitos enquanto cidadãos brasileiros.
A dificuldade de implementar domesticamente os direitos fundamentais reconhecidos em leis nacionais e tratados internacionais é identificada como um dos principais desafios de direitos humanos para os Estados. Embora essa desconexão da lei com a prática atinja a todas as pessoas e grupos, ela acaba por impactar especialmente os povos indígenas e seus direitos territoriais, em grande parte devido à histórica invisibilidade de suas demandas e das violações cometidas contra seus interesses.
O sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, primeiro relator da ONU sobre direitos fundamentais e liberdades indígenas, notou que os problemas e desafios enfrentados pelos indígenas derivam de processos históricos e causas estruturais que não podem ser simplesmente atacadas com a adoção de novas leis e a criação de novas instituições públicas, apesar de estas serem ferramentas fundamentais para a defesa dos direitos indígenas. Para o relator é necessário haver uma abordagem multidimensional, vontade política, ativa participação dos povos indígenas com base no respeito à diferença e na sensibilidade intercultural, bem como pleno envolvimento dos governos e de toda a comunidade nacional e internacional.
A preocupação com a permanente e até mesmo crescente desconexão entre lei e prática de proteção de direitos humanos faz com que uma parte da atenção e boa dose de esperança se voltem para as cortes nacionais. A Suprema Corte de Belize reconheceu o direito do povo Maya às suas terras em 2007, a Suprema Corte de Botswana em 2006 decidiu pelo retorno dos indígenas Basarwa às suas terras tradicionais, a Suprema Corte do Kenia reconheceu o direito dos Ilchamus a terem representação no parlamento, a Suprema Corte da África do Sul reconheceu a propriedade costumeira da comunidade Richtersvel às suas terras tradicionais com direitos inclusive sobre os recursos de subsolo, uma corte federal australiana decidiu pelo reconhecimento da ocupação tradicional dos indígenas Noonger sobre uma área tradicional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi positivamente mencionado pelo Relator da ONU devido ao julgamento em agosto de 2006 que condenou ao crime de genocídio os quatro indivíduos responsáveis pela morte de 12 Yanomami em 1993.
Entretanto, a inconsistência entre as legislações indígenas e de outros setores (como por exemplo de exploração de recursos naturais), e a existência de legislação seguida de não-implementação geram ampla insegurança jurídica e crescente conflito social que merecem especial atenção. O relator Stavenhagen identificou que em países como Cambodja, Chile, México e Filipinas os conflitos de direitos tendem a ser resolvidos de forma a contrariar os interesses indígenas formalmente protegidos.
Em visita ao Brasil em agosto de 2009, o professor James Anaya, relator da ONU sobre direitos fundamentais e liberdades indígenas, cumprimentou o país pelos seu comprometimento com o avanço dos direitos dos povos indígenas. Segundo ele, a proteção legal e constitucional aos povos indígenas no Brasil está entre as mais avançadas do mundo. No entanto, o relator observou que ainda há muito o que se melhorar para que as proteções constitucionais e as normas internacionais sejam efetivamente implementadas na prática.
O relator ressaltou a necessidade de assegurar a plena auto-determinação dos povos indígenas em um sistema de Estado que esteja integralmente aberto ao respeito à diversidade. Também destacou que é evidente que os povos indígenas frequentemente não controlam as decisões que afetam suas vidas e suas terras por causa de invasões e exploração de recursos naturais por terceiros, mesmo quando estas tenham sido oficialmente demarcadas e homologadas.
por Érika M. Yamada, advogada do Instituto Socioambiental (ISA)